Temos ensinado que o conhecimento de Deus é
amplamente demonstrado na obra de criação e composição do universo, em todas as
Suas criaturas, e que, todavia, será exposto com maior clareza por Sua Palavra.
Devemos considerar agora se Deus se apresenta na Escritura tal qual O vimos
figurado em Suas obras. Este assunto será longo, se for tratado diligentemente.
Mas eu me contento em oferecer um resumo pelo qual a consciência dos fiéis seja
admoestada de molde a perceberem eles quão essencial é que sejam levados a
conhecer a Deus na Escritura e sejam dirigidos a um objetivo certo e definido
de maneira que o alcancem.
Primeiro, consideremos que o Senhor se revela como
o Deus que, após haver criado os céus e a terra, espalhou Sua graça e Sua
benevolência sobre todo o gênero humano. Todavia, sempre e perpetuamente
nutriu, sustentou e manteve a Sua graça especial para com os crentes, e, em
reciprocidade, eles O conhecem e Lhe prestam honra. Igualmente, Ele põe diante
dos olhos deles (como, digamos, numa pintura), qual é a constância da Sua
bondade entre os fiéis, com que cuidado providencial Ele vela por eles, quão
inclinado se mostra a lhes fazer o bem, qual o poder do Seu socorro, quão
ardentemente os ama, como é grande a Sua paciência, pela qual suporta as faltas
deles, que paternal clemência demonstra quando os castiga, e que perene
segurança lhes dá de Suas promessas.
Por outro lado, Ele manifesta o Seu rigor na
penalidade imposta aos pecadores, mostra como se inflama a sua terrível ira, depois
de haver suportado afronta durante muito tempo, e os faz sentir quanto poder
tem a Sua mão para os confundir e os dissipar.
Essa descrição ajusta-se bem ao que dissemos que se
mostra na figura universal do mundo. Contudo, em certo lugar a propriedade
dessa descrição é expressa de modo que Sua face nos é apresentada vividamente,
expondo-se patente à nossa contemplação. Sim, pois, na descrição feita por
Moisés, parece que ele quis abranger num resumo tudo quanto se permite que os
homens conheçam de Deus. Diz ele:
“Senhor, Senhor, Deus compassivo, clemente e longânimo, e grande em
misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que
perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado,
e visita a iniqüidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira
e quarta geração”. Pelo que devemos considerar que a Sua eternidade e a Sua
essência, residente nele próprio, são anunciadas por esse nome, que aparece duas
vezes no texto hebraico da passagem acima transcrita (nome que equivale a
dizer: “aquele que é único”); Sendo que as Suas virtudes nos são trazidas à lembrança,
virtudes que demonstram, não que Ele se fecha em Si mesmo, mas que Ele está
entre nós. E isso de tal maneira que este conhecimento se apóia mais em viva
experiência que em vã especulação.
Além disso, vemos que aqui são enumeradas para nós
as virtudes que temos visto resplender no céu e na terra, a saber: a clemência,
a bondade, a misericórdia, a justiça, o juízo e a verdade. Porque o Seu poder
está incluído na palavra hebraica empregada como Seu terceiro nome ou título,
que equivale a dizer como as virtudes nele se contêm. Os profetas também nos
oferecem os mesmos títulos quando querem exaltar e esclarecer o Seu Santo Nome.
Para não nos constrangermos por acumular muitas passagens, no momento será
suficiente citar um Salmo no qual a soma total das Suas propriedades é recitada
com tal diligência que se pode dizer que nada é omitido.
E, todavia, nada ali é mencionado que não se possa
contemplar nas criaturas, de tal maneira Deus tanto se nos dá a sentir por
experiência quanto se nos revela por Sua Palavra. Em Jeremias, onde Deus
declara que deseja ser conhecido por nós, a descrição não é tão clara e completa.
Mas praticamente vem a dar na mesma. “O que se
gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço
misericórdia, juízo e justiça na terra”. Estas três coisas são as que principalmente
precisamos conhecer. Sua misericórdia, na qual se firma a salvação de todos
nós; o juízo de Deus, que diariamente Ele exerce sobre os maus e que, ainda
mais rigorosamente, lhes está reservado como castigo eterno; e Sua justiça,
pela qual os Seus fiéis são por Ele preservados e tratados com benignidade.
Compreendidas estas três coisas, o profeta dá testemunho de que temos
abundantes motivos para gloriar-nos em Deus. Contudo, assim procedendo, não são
omitidos o Seu poder, a Sua verdade, a Sua santidade e a Sua bondade. Sim,
porque, como se poderia ter real entendimento da Sua justiça, da Sua
misericórdia e do juízo por Ele exercido, requisito indispensável, se esse
conhecimento não estivesse fundamentado em Sua verdade imutável? E como se
poderia crer que Ele governa a terra com justiça e juízo, sem o reconhecimento
do Seu poder? De onde procede a Sua misericórdia, senão da Sua bondade?
Finalmente, se todos os seus caminhos são misericórdia, juízo e justiça,
igualmente neles rebrilha a santidade do Seu Ser. Pois bem, o conhecimento de
Deus, que nos é apresentado na Escritura, não tem outra finalidade que não a
que se manifesta em Suas criaturas, qual seja: Primeiramente, induzir-nos ao
temor de Deus; em seguida, a que ponhamos nele a nossa confiança, para que aprendamos
a servi-lo e honrá-lo com uma vida inculpável e com uma obediência não fingida;
e assim descansemos em Sua bondade.
Todavia, porque Deus não se deixa ver diretamente e
de perto, a não ser na face de Cristo, a qual só se pode contemplar com os
olhos da fé, o que resta dizer sobre o conhecimento de Deus melhor será
protelar até o lugar em que estaremos falando sobre o entendimento dessa fé.
31º Tese de Lutero - Tão raro como quem é penitente de verdade é quem
adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.